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Publicado em: 15/10/2018

O que aprendi com meus mestres

Por Celso Mojola

Tive muitos professores, e com todos aprendi assuntos importantes. Houve mestres que me inspiraram e me incentivaram, tornando-se modelos do que gostaria de ser; houve aqueles com os quais não tive amizade ou simpatia, mas transmitiram informações técnicas valiosas; houve professores ruins, até mesmo péssimos. Certamente estes também foram proveitosos. Em vários momentos de minha vida docente, em dúvida na hora de tomar certa decisão pedagógica, eu imaginei como agiria naquela situação um desses péssimos professores e fiz exatamente o contrário. Essa estratégia sempre deu certo!  
 
Em breve farei 59 anos. Aos 9 iniciei meus estudos musicais: completo, portanto, 50 anos como estudante de música. E decidi escrever algumas reflexões sobre essa trajetória. Como seria impossível nomear todos os professores, limito-me a falar dos mentores de composição. As quatro personalidades aqui comentadas são responsáveis por grande parte do que hoje sou, e a todos expresso minha profunda admiração e meu agradecimento. Convivi com eles momentos muito felizes, e permanecem comigo em meus pensamentos. De cada um retenho memórias positivas que registro neste artigo.  
 
1 Willy Correa de Oliveira  
 
Estudei com Willy Correa de Oliveira durante o Bacharelado em Composição no Departamento de Música da USP, em meados dos anos 1980. Tive inicialmente aulas de Linguagem e Estruturação Musical, em turmas coletivas, e posteriormente Laboratório de Composição, em aulas individuais. Por ter ficado sob sua orientação durante um longo período pude assimilar sua experiência, e dessa forma ele se tornou o meu professor mais influente. Embora nunca tenha frequentado o círculo de amigos próximos a ele, e com o passar do tempo tenha desenvolvido uma visão mais independente, considero-me seu discípulo.  
 
O curso de análise era muito bem organizado. Estudei formas clássicas, conheci em profundidade Beethoven, Mozart, Schumann, Mahler. Para mim, que naquele momento adentrava no mundo da composição, esses encontros foram memoráveis. As aulas, porém, eram desafiadoras: turmas pequenas, ficávamos muito expostos, completamente fora de nossa zona de conforto. Todos os alunos tinham de participar das discussões e realizar os exercícios, que envolviam criação de pequenos trechos musicais, pesquisas bibliografias e audições dirigidas.  
 
Eu anotava cuidadosamente as exposições teóricas, complexas e repletas de conteúdo muitas vezes enigmático para mim. Pressentia que, mesmo não compreendendo inteiramente o assunto naquela época, a informação passada era relevante, única e me serviria no futuro. Tenho até hoje essas anotações originais, e elas muitas vezes foram a base de minhas aulas. Já os laboratórios de composição, que se realizaram no período final do Bacharelado, tiveram outra natureza: eram voltadas para a criação. Eu levava as peças que estava trabalhando, o Willy examinava e comentava.  
 
Nessa etapa ele propôs um programa para compor cinco obras: uma peça para um conjunto de câmara até cinco instrumentistas, uma peça para um conjunto de câmara de cinco a onze instrumentistas sem piano, uma peça solo para instrumento não polifônico, uma peça para piano e uma peça para orquestra sinfônica. Eu poderia definir livremente a forma, a técnica e o estilo a ser empregado, mas tinha de ser numa linguagem contemporânea. Cumpri com rigor o planejamento, o que agradou ao mestre. Encerrei o curso com a composição de Um Pensamento Sinfônico, para grande orquestra, que se constituiu no que seria hoje o TCC (naquela época não existia esse trabalho de conclusão de curso).  
 
Na preparação para escrever estas obras Willy fez duas recomendações. A primeira é que eu devia fugir do lugar comum. Ele insistia com muita ênfase que não trouxesse nada que fosse minimamente banal – era intransigente com relação a isso! Um motivo convencional, um encadeamento harmônico padronizado ou um modelo formal fixo o incomodava muito. Conservo até hoje um pouco dessa ideia: mesmo não buscando sempre uma concepção inovadora da escrita, também me incomoda a banalidade autoindulgente.  
 
A segunda diretriz foi que para compor uma nova peça eu poderia pesquisar todo o repertório tradicional. No entanto ele vetou música contemporânea – poderia ouvir até os clássicos da modernidade (Stravinsky, Bartok, Schoenberg) mas nada de 1950 para frente. Segundo sua justificativa isso era para não ser influenciado de maneira direta por padrões de escrita, de modo que eu pudesse desenvolver uma linguagem mais original.  
 
Ainda que um pouco intrigado segui a orientação, o que me permitiu revisitar a história da música de maneira criativa; admito, no entanto, que nunca estive seguro da eficiência desse procedimento. Gostei de fazê-lo na época, e foi divertido buscar, por minha conta e risco, soluções pessoais para sonoridades que buscava construir, mas não reproduzo essa diretriz com meus alunos.  
 
Willy era um grande apreciador da leitura e com conhecimentos que iam muito além da música. Interessava-se por história e sociologia, e passava a seus alunos o desejo de estudar assuntos diversos. Identifiquei-me com essa postura, e desenvolvi uma grande voracidade cultural. Nessas aulas comecei a compreender, com clareza, o relacionamento entre música e sociedade.  
 
2 Stephen Hartke  
 
Stephen Hartke é um professor norte-americano que na década de 1980 passou um período no Departamento de Música da USP como Professor Visitante. Admirador da cultura brasileira, falava um português correto e ministrou as disciplinas História da Música Norte Americana, Notação Musical, Análise das Obras Americanas de Stravinsky e Composição.  
 
Seu programa, no curso de composição, baseava-se em obras trazidas pelos estudantes. Solicitava que o aluno tocasse a peça no piano: tive até de tentar reduzir, lendo na hora, uma peça para quarteto de cordas. Quando eu não conseguia (o que ocorreu muitas vezes, porque isso não era exigido no curso regular de composição) o mestre cobrava mais estudo. Então ele mesmo sentava ao piano e tocava a redução, comentando. Partia da proposta apresentada e fazia sugestões; indicava materiais que poderíamos estudar para ajudar a desenvolver o trabalho.  
 
Como professor universitário norte-americano, Hartke tinha obras regularmente interpretadas nos EUA, onde é frequente a presença de compositores nacionais na programação dos concertos. Muitas vezes trouxe para as aulas gravações desses eventos, e nos descrevia os problemas surgidos nas estreias e eventuais modificações que posteriormente fez nas peças. Quando não havia gravação, tocava. Um dia mostrou uma sonata para violino e piano que acabara de compor, executando no piano simultaneamente as partes do piano e do violino.  
 
Ele foi para mim um modelo de professor. Alguém que domina aspectos técnicos da linguagem da música combinado com sólida didática para transmitir com clareza conceitos complexos. Hartke é, até hoje, uma fonte de inspiração. Foi durante aquelas aulas que tive a certeza da minha profissão, e desejei um dia ser como ele. Passei a estudar mais todas as disciplinas da área da música, e intensifiquei meu trabalho com o piano, praticando redução de obras orquestrais. Ali começava a se organizar o que viria a ser anos depois o meu próprio curso de composição.  
 
Ele observava com cuidado questões relativas à notação e procurou corrigir problemas que identificou nas minhas partituras. Por ser um copista profissional, conhecia esse assunto em profundidade e foi nesse período que também passei a abordar de maneira mais completa os detalhes da escrita. Ritmo foi um tópico que discutimos bastante. Eu ainda escrevia preso à fórmula de compasso, e Hartke me alertou sobre isso. Passou orientações e exercícios que ajudaram a superar o que ele chamava de “tirania das barras de compasso”. Essa experiência alicerça as orientações que transmito aos meus alunos sobre esses mesmos problemas.  
 
Segundo sua própria definição, ele era um compositor tonal. Certamente um compositor tonal do século XX, mas ainda assim respeitador dos princípios da funcionalidade harmônica. Conhecia bastante música contemporânea, tendo tido aulas com importantes nomes da vanguarda norte-americana e acompanhado estreias e oficinas de compositores internacionais que visitavam os EUA. Mas sua predileção era por uma música mais tradicional, e ainda que respeitasse os ideais da música nova (dominante na USP naquela época) preferia que seus alunos escrevessem de maneira mais simples e padronizada.  
 
Hartke nos alertou para as dificuldades do mundo real. Particularmente com relação a obras orquestrais, quando os grupos profissionais dispõem de pouco tempo para ensaios e a notação nesses casos tem de ser a mais precisa e clara e possível. Comentou estar havendo uma tendência, naquela época nos EUA, a se voltar ao uso de uma notação mais convencional. Isso aconteceu após um período (décadas de 1960 e 70) em que foram utilizados, de maneira exagerada segundo seu entendimento, novos sistemas notacionais que trouxeram muitas dificuldades para ensaios, restringindo as estreias de obras.  
 
3 Gilberto Mendes  
 
Gilberto Mendes foi o outro professor que tive durante o período do Bacharelado em Composição na USP. Essa graduação iniciava a partir de um ciclo básico, onde eram oferecidas disciplinas comuns a todos os cursos; em seguida o programa previa Linguagem e Estruturação Musical, inicialmente com o Willy Correa de Oliveira e depois com Mendes.  
 
No meu caso em particular o período de aulas (um ano) com Gilberto Mendes foi prejudicado porque quando iniciou o semestre ele estava em viagem como Professor Visitante nos EUA e só começamos as atividades no início de maio. O tema deveria ser dodecafonismo, mas recordo que o curso não foi muito bem organizado. Na verdade, Mendes não era exatamente um bom professor no sentido tradicional da palavra. Ele mesmo comentou que não se sentia muito atraído para ministrar uma aula de composição ou análise nos moldes tradicionais. Mas o contato que tive com ele foi de grande impacto na minha formação.  
 
Na época destacava-se bastante como compositor, tanto no cenário nacional quanto internacional, com obras tocadas no mundo todo. O Festival Música Nova de Santos, criado e organizado por ele, estava num período áureo, e recebia importantes nomes da música contemporânea. Vários desses músicos ministraram oficinas no Departamento de Música da USP, e mesas de debates foram organizadas com esses convidados, que vinham a esses eventos através dos elos estabelecidos por Mendes.  
 
Ele era um grande apreciador de cinema, teatro, jazz e canções populares, além de se interessar por músicas de tradições não ocidentais (uma certa novidade na época). Eu sempre tive muito interesse por diferentes artes, o que fez surgir entre nós uma proximidade intelectual. Se por um lado sua abordagem pedagógica não focava um estudo de natureza mais técnica, por outro Gilberto Mendes foi um grande artista que conheci de perto, alguém que vivenciou profundas experiências estéticas num tempo bastante amplo, e com o qual consegui assimilar fragmentos importantes desse conhecimento. Curiosamente, algumas de suas aulas mais significativas foram ministradas fora da sala, em conversas no corredor ou tomando um café. Ainda que tenha estudado com ele dentro de um bacharelado regular, eu diria que Gilberto Mendes foi um dos meus melhores professores informais.  
 
A convite de Mendes integrei várias vezes a programação do Festival Música Nova, como compositor e intérprete. Essas participações foram o ponto de partida para minhas atividades como pianista e organizador de eventos que venho desenvolvendo desde então e considero parte relevante da maneira como penso e vivo a composição musical.  
 
Sou filho de uma artista plástica e aprecio literatura e cinema; desde criança entendo que as artes se entrelaçam. Gilberto Mendes demonstrou-me como a música pode se relacionar organicamente com outras artes. Inspiro-me sobretudo no seu posicionamento estético, que defino como um pensamento que considera com seriedade a questão da identidade nacional brasileira sem se deixar turvar, em nenhum instante, pelas deformações características do nacionalismo tradicional. Uma concepção que está na raiz da minha própria abordagem.  
 
4 Almeida Prado  
 
Meu estudo com Almeida Prado aconteceu durante o Mestrado no Instituto de Artes da Unicamp, no início da década de 1990. Foi uma situação diferente daquela em que convivi com os três professores anteriores: agora eu estava mais amadurecido, e com uma obra composicional começando a se projetar. O próprio Almeida Prado já tivera a oportunidade de ouvir execuções de minhas peças, como ele mesmo comentou quando conversamos pela primeira vez. Um dos fatores que levei em consideração ao procurar a Unicamp foi justamente a possibilidade de estudar com esse compositor; fiquei muito feliz ao receber a notícia de que fora aprovado no processo seletivo e meu orientador seria então o Almeida Prado.  
 
Uma diferença que senti, ao estudar em uma nova instituição, foi o tratamento recebido. Na USP eu era um aluno. Ainda que fosse um aluno no qual os professores reconheciam seriedade e dedicação, o maior elogio que circulava era que eu seria “uma jovem promessa...”! Pelo Almeida Prado fui reconhecido simplesmente como compositor. Isso foi importante, porque eu já ministrava aulas de composição em faculdades, obtinha certo destaque, mas estava repleto de dúvidas; passava por um período de afirmação, de busca de uma identidade. O ambiente que encontrei na Unicamp ajudou-me a encontrar o caminho que eu queria percorrer.  
 
Com Almeida Prado tive as disciplinas Análise e Composição, além das orientações acadêmicas. Minha Dissertação consistiu na criação de uma obra orquestral de grandes proporções (Sinfonia I), e um estudo teórico abordando recursos e procedimentos técnicos empregados na organização de uma peça de amplas dimensões sem fazer uso da tonalidade (a sinfonia está organizada em movimento único, com duração superior a 30 minutos).  
 
Como minha pesquisa era sobre uma obra para orquestra sinfônica, muito do que estudei na Unicamp relacionou-se à orquestração. Durante os encontros Almeida Prado mostrou diversas de suas peças, comentou problemas de equilíbrio entre os instrumentos, deu sugestões, orientou e apoiou decisões artísticas que tive de fazer. Foi ele quem me abriu os ouvidos para as orquestrações de Tchaikovsky, compositor que até aquele momento ainda não havia descoberto. Nessa época iniciava minha carreira acadêmica como professor de orquestração, atividade que exerço até hoje; os estudos realizados nesse período ajudaram a organizar minha metodologia nessa área.  
 
Almeida Prado observou que, para o compositor, as questões teóricas têm de ser resolvidas na composição. Esse é um conceito que assimilei bem e considero uma das bases de minha poética. No mundo contemporâneo é fundamental estar em sintonia com as reflexões mais atualizadas sobre a natureza da linguagem artística; porém, o que distingue o compositor do teórico é que o resultado desses estudos está presente na sua obra musical.  
 
Observei admirado a maneira como ele compreendia em profundidade o sentido da música. Eu levava minhas composições, em manuscritos rasurados; ele observava e fazia comentários pertinentes, indo direto aos pontos fundamentais. Demonstrava haver compreendido não apenas o que as notas expunham, mas o que havia para além delas. É importante destacar que até esse momento eu escrevia as partituras integralmente à mão, inclusive a cópia final. Somente alguns anos após a conclusão do Mestrado passei a utilizar os editores de partituras tão disseminados atualmente. Minha Dissertação, com mais de 100 páginas, foi elaborada numa tradicional máquina de escrever.  
 
Almeida Prado era um grande pianista e frequentemente tocava nas aulas, inclusive reduções de partituras orquestrais. Ele me incentivou a continuar desenvolvendo os estudos pianísticos e recomendava que o compositor também mantivesse uma atividade de intérprete. Ele foi um farol que, num momento de neblina, me ajudou a enxergar um pouco mais para frente, e ver que a trilha que seguia estava certa. Fiquei honrado quando, anos depois, ele participou da Banca de Arguição de Defesa do meu Doutorado na Unirio. Foi uma imensa alegria encontra-lo nessa ocasião, quando pudemos conversar sobre os tempos da Unicamp e relembrar como o trajeto que me levou até o Doutorado começou a ser traçado naquele momento.

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